domingo, 2 de maio de 2010

Poema Insulano

"A antiga cidade é uma Ilha que se desfaz em salitre"

Arlete Nogueira da Cruz, In Litania da Velha.

Vejo agora vejo e não estou sonhando

que Dom João, o Rei 4º, e bem-andante,

não terá o encoberto de Dom Fernando

que tem ferro e ferrão sem ser infante.

Não é aqui definitivamente

o Quinto Império

da prédica do Bandarra,

sapateiro profeta e profano,

nem tampouco é aqui a Corte de Queluz

que submergiu nos encantos...

porque a amplidão dos Lençóis

é maior que os campos de Alcácer- Quibir.

Não há mais na Ilha vinho para os vivos

e flores para os mortos,

e nem canoas para as travessias.

Somente o Sol liberta-se de seu claustro

a cair vermelho por detrás da tarde,

ante meus olhos desarmados

e atracados nos cais de minh'alma.

O promontório não cresce mais no verão

e apodrece num montão de pedras a beijar

entulhos e mirantes,

e telhados verdes de chuvas.

Homens e paralelepípedos despencam

dos becos e vielas

por cumeeiras sem escápulas, territórios de artistas

e pensadores que secam as vísceras ao sol do meio-dia.

Todos são poetas até prova em contrário,

e nada mais existe escrito a carvão, ou a caco de telhas,

nos muros e nos planos das calçadas.

As janelas desconjuntaram-se e as rótulas vazias

ficaram nos peitoris sem olhos e cotovelos.

As bilhas secaram como os peitos das mães de África,

e os quintais despomatizaram-se,

mas as marrecas continuam em seus baixos voos...

As portas e as janelas, sem mais postigos,

foram literalmente fechadas

e presa para sempre, lá no fundo do corredor,

por um aleijão na argamassa,

uma réstia de luz vinda do poste da praça,

antes de tudo ser, como realmente o foi, e para sempre...

Em antigas casas, de gestos portugueses,

plantaram-se às portas e às janelas,

não alecrins, e jarros com flores,

mas bugiigangas do charco, e chinesices,

que nada dizem à memória dos ilustres mortos;

nas igrejas não têm mais missas

e réquiens cantados,

nem mais as homilias de Padre Mohana

nas manhãs de domingo,

e nem os cânticos de Te Deum,

e nem mais rezas à noite, e ladainhas...

Os velhos sobrados, depois de tombados,

de tantos desamores e maus-tratos,

começaram literalmente a cair,

por não poder esperar

a briga dos herdeiros pelo inventário;

são esses mesmos sobrados,

esburacados e enfeados,

cujos motivos lusônios,

foram todos furtados,

a trocarem os adereços de endereços,

além de serem invadidos por devassas trepadeiras,

que se acoitam pelas paredes e sacadas de ferro.

Que belíssimos jardins de inverno!

Os palacetes da média burguesia,

com jardins, e terraços,

e gradis bordados,

viraram espaços de defuntos, e dores,

e, ao invés dos rasos risos do passado,

vivem hoje dos choros das carpideiras,

e do treme luzir dos círios acesos,

e do cheiro adocicado

de cravos e de coroas de flores.

A Ilha que um dia foi rebelde,

de alma pura e corpo sujo,

hoje mais se parece uma fotografia

esquecida numa mesa de redação,

como se fosse um grande abrigo

com pátio e poço a desmanchar-se

em caliça, onde vivem indigentes,

e mais os jubilados da sorte,

e vencidos e degenerados,

personagens de histórias de ficção

e de tratados de sociologia

que resolveram sair

das páginas em que viviam,

para expulsar seus autores

e levá-los ao exílio e à morte,

e se aboletarem

na podre carcaça da Ilha, como almas calcinada;

pobres personagens sem pessoas,

aos poucos defluem como resíduos

para os muitos portos, ao redor da Ilha,

para serem diluídos no sal

e expostos ao Sol e ao céu!...

Não há mais pregões nas rua, nem cofos, e paus-de-carga,

nem mais comícios políticos no velho Largo do Carmo,

e algarvias de estudantes.

Nunca mais aquelas brigas panfletárias

de morfologia e sintaxe,

e nem aqueles filólogos a discutirem

se o nome da Cidade,

provindo da variação latina de Ludovico,

seria mesmo com s, ou z.

Nunca mais bondes, vitrinas, saraus e retretas...

e pronomes bem-colocados, e verbos conjugados certos,

no tempo da carne e no modo do vinho.

Mas sempre na Ilha há de existir

a crueza da língua viperina,

em punir com sentenças extramuros,

inocentes, principalmente,

com injúrias, calúnias, infâmias e difamações,

como se o abecedário predicado por Vieira

continuasse a explodir no tempo,

dando ênfase à letra M.

Diz o hino libertário que "...caiu do invasor a audácia

estranha, e surgiu do direito a luz dourada..."

E a Ilha ficou sem mais ser!

E a história se fez escrita, e ficou na cidade,

na cidade que tem nome de santo,

e de rei, e de menino.

E o passado se fez de rima na poesia encardida

nos azulejos, e na saudade de tudo

quanto à vista alcança,

e na lembrança do que ainda se desdobra,

e na inteligência de crânios polidos

que rolam à-toa ao rés-do-chão.

Morreram todos, dizem os cadeados nas cancelas!

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