tag:blogger.com,1999:blog-73341859845152031642024-03-08T01:19:38.211-08:00Apontamentos de Fernando Bragafernandobragahttp://www.blogger.com/profile/06921170976156035893noreply@blogger.comBlogger1125tag:blogger.com,1999:blog-7334185984515203164.post-23126524206863855702010-05-02T14:36:00.000-07:002010-05-02T14:38:45.848-07:00Poema Insulano"A antiga cidade é uma Ilha que se desfaz em salitre"<br /><br /> Arlete Nogueira da Cruz, In Litania da Velha.<br /><br />Vejo agora vejo e não estou sonhando<br /><br />que Dom João, o Rei 4º, e bem-andante,<br /><br />não terá o encoberto de Dom Fernando<br /><br />que tem ferro e ferrão sem ser infante.<br /><br />Não é aqui definitivamente<br /><br />o Quinto Império<br /><br />da prédica do Bandarra,<br /><br />sapateiro profeta e profano,<br /><br />nem tampouco é aqui a Corte de Queluz<br /><br />que submergiu nos encantos...<br /><br />porque a amplidão dos Lençóis<br /><br />é maior que os campos de Alcácer- Quibir.<br /><br />Não há mais na Ilha vinho para os vivos<br /><br />e flores para os mortos,<br /><br />e nem canoas para as travessias.<br /><br />Somente o Sol liberta-se de seu claustro<br /><br />a cair vermelho por detrás da tarde,<br /><br />ante meus olhos desarmados<br /><br />e atracados nos cais de minh'alma.<br /><br />O promontório não cresce mais no verão<br /><br />e apodrece num montão de pedras a beijar<br /><br />entulhos e mirantes,<br /><br />e telhados verdes de chuvas.<br /><br />Homens e paralelepípedos despencam<br /><br />dos becos e vielas<br /><br />por cumeeiras sem escápulas, territórios de artistas<br /><br />e pensadores que secam as vísceras ao sol do meio-dia.<br /><br />Todos são poetas até prova em contrário,<br /><br />e nada mais existe escrito a carvão, ou a caco de telhas,<br /><br />nos muros e nos planos das calçadas.<br /><br />As janelas desconjuntaram-se e as rótulas vazias<br /><br />ficaram nos peitoris sem olhos e cotovelos.<br /><br />As bilhas secaram como os peitos das mães de África,<br /><br />e os quintais despomatizaram-se,<br /><br />mas as marrecas continuam em seus baixos voos...<br /><br />As portas e as janelas, sem mais postigos,<br /><br />foram literalmente fechadas<br /><br />e presa para sempre, lá no fundo do corredor,<br /><br />por um aleijão na argamassa,<br /><br />uma réstia de luz vinda do poste da praça,<br /><br />antes de tudo ser, como realmente o foi, e para sempre...<br /><br />Em antigas casas, de gestos portugueses,<br /><br />plantaram-se às portas e às janelas,<br /><br />não alecrins, e jarros com flores,<br /><br />mas bugiigangas do charco, e chinesices,<br /><br />que nada dizem à memória dos ilustres mortos;<br /><br />nas igrejas não têm mais missas<br /><br />e réquiens cantados,<br /><br />nem mais as homilias de Padre Mohana<br /><br />nas manhãs de domingo,<br /><br />e nem os cânticos de Te Deum,<br /><br />e nem mais rezas à noite, e ladainhas...<br /><br />Os velhos sobrados, depois de tombados,<br /><br />de tantos desamores e maus-tratos,<br /><br />começaram literalmente a cair,<br /><br />por não poder esperar<br /><br />a briga dos herdeiros pelo inventário;<br /><br />são esses mesmos sobrados,<br /><br />esburacados e enfeados,<br /><br />cujos motivos lusônios,<br /><br />foram todos furtados,<br /><br />a trocarem os adereços de endereços,<br /><br />além de serem invadidos por devassas trepadeiras,<br /><br />que se acoitam pelas paredes e sacadas de ferro.<br /><br />Que belíssimos jardins de inverno!<br /><br />Os palacetes da média burguesia,<br /><br />com jardins, e terraços,<br /><br />e gradis bordados,<br /><br />viraram espaços de defuntos, e dores,<br /><br />e, ao invés dos rasos risos do passado,<br /><br />vivem hoje dos choros das carpideiras,<br /><br />e do treme luzir dos círios acesos,<br /><br />e do cheiro adocicado<br /><br />de cravos e de coroas de flores.<br /><br />A Ilha que um dia foi rebelde,<br /><br />de alma pura e corpo sujo,<br /><br />hoje mais se parece uma fotografia<br /><br />esquecida numa mesa de redação,<br /><br />como se fosse um grande abrigo<br /><br />com pátio e poço a desmanchar-se<br /><br />em caliça, onde vivem indigentes,<br /><br />e mais os jubilados da sorte,<br /><br />e vencidos e degenerados,<br /><br />personagens de histórias de ficção<br /><br />e de tratados de sociologia<br /><br />que resolveram sair<br /><br />das páginas em que viviam,<br /><br />para expulsar seus autores<br /><br />e levá-los ao exílio e à morte,<br /><br />e se aboletarem<br /><br />na podre carcaça da Ilha, como almas calcinada;<br /><br />pobres personagens sem pessoas,<br /><br />aos poucos defluem como resíduos<br /><br />para os muitos portos, ao redor da Ilha,<br /><br />para serem diluídos no sal<br /><br />e expostos ao Sol e ao céu!...<br /><br />Não há mais pregões nas rua, nem cofos, e paus-de-carga,<br /><br />nem mais comícios políticos no velho Largo do Carmo,<br /><br />e algarvias de estudantes.<br /><br />Nunca mais aquelas brigas panfletárias<br /><br />de morfologia e sintaxe,<br /><br />e nem aqueles filólogos a discutirem<br /><br />se o nome da Cidade,<br /><br />provindo da variação latina de Ludovico,<br /><br />seria mesmo com s, ou z.<br /><br />Nunca mais bondes, vitrinas, saraus e retretas...<br /><br />e pronomes bem-colocados, e verbos conjugados certos,<br /><br />no tempo da carne e no modo do vinho.<br /><br />Mas sempre na Ilha há de existir<br /><br />a crueza da língua viperina,<br /><br />em punir com sentenças extramuros,<br /><br />inocentes, principalmente,<br /><br />com injúrias, calúnias, infâmias e difamações,<br /><br />como se o abecedário predicado por Vieira<br /><br />continuasse a explodir no tempo,<br /><br />dando ênfase à letra M.<br /><br />Diz o hino libertário que "...caiu do invasor a audácia<br /><br />estranha, e surgiu do direito a luz dourada..."<br /><br />E a Ilha ficou sem mais ser!<br /><br />E a história se fez escrita, e ficou na cidade,<br /><br />na cidade que tem nome de santo,<br /><br />e de rei, e de menino.<br /><br />E o passado se fez de rima na poesia encardida<br /><br />nos azulejos, e na saudade de tudo<br /><br />quanto à vista alcança,<br /><br />e na lembrança do que ainda se desdobra,<br /><br />e na inteligência de crânios polidos<br /><br />que rolam à-toa ao rés-do-chão.<br /><br />Morreram todos, dizem os cadeados nas cancelas!fernandobragahttp://www.blogger.com/profile/06921170976156035893noreply@blogger.com0